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26 de dezembro de 2011

Tio Jaime e o demônio de minha tia.

Essa postagem está um pouco atrasada, mas pra dar uma risada nunca é tarde demais. 
Este é um texto do meu TIO MARCO MELLO. O proposito dele, não sei exatamente se foi para, descarregar, desabafar, provocar, sei lá, só sei que rendeu umas boas discórdias familiares e varias pessoas familiares chorando de rir, o que na minha família não é muito difícil.


Tio Jaime e o demônio de minha tia.

Para o Deca,
que gosta das histórias
que eu conto
Para a Kity que ingressou
na família por minha causa.
e
para os pequenos
que nunca viram algo assim

Recém completara sete anos quando minha família mudou pela
primeira vez. Em anos seguintes, até que pudesse dizer que eu é que
havia mudado, isso tornou a se repetir mais vezes, por bonança ou
turbulência, com vantagem para a turbulência. Lembro perfeitamente
da nova casa, seus três quartos, sala, copa, cozinha; ao fundo, havia
dependências de empregada, uma garagem que também servia de
depósito, guardava coleções de revistas velhas e outros badulaques,
na entrada dela estendia-se uma parreira de tamanho médio que
garantia a felicidade do mês de fevereiro, encostado a garagem um
canil que chegou a ser usado para criar coelhos; ao redor da casa: na
frente, ao fundo e em um dos lados, áreas gramadas, com algumas
árvores, uma delas um chorão – inesquecível –: meu pai instalou na
árvore uma casinha a qual tínhamos acesso por intermédio de uma
corda. Era meu refúgio para gazetear escola e ler os livros do Tarzan.
Embora lembre cada espaço é difícil precisar as dimensões da casa.
Não existe um sistema capaz de converter memórias infantis em
medidas de adultos. Em minhas lembranças ela era bem grande,
mas raciocino que ela não deveria ser enorme porque não sobravam
espaços, ocupávamos todos os cantos. Dois quartos eram reservados
às crianças: um deles com um beliche e mais uma cama, dormiam os
meninos, em outro ficava minha irmã mais velha. Minha outra irmã,
recém nascida, prematura, dormia no quarto de meus pais. Não havia
quarto de hóspedes. Aos finais de semana a população aumentava.
Meus avós paternos, tios e alguns amigos de meus pais compareciam
para os almoços dominicais que se arrastavam tarde à dentro. Uma
das características mais marcantes de minha família é a sociabilidade
bastante extensiva. Parentes também passavam um tempo em nosso
domicilio e durante estas temporadas o espaço era reorganizado
para poder abrigar a todos. Foi em um momento desses que conheci
essa minha tia do título. Dela sei muito pouco. Depois do episódio
nunca mais a vi ou soube dela qualquer coisa. Sendo rigoroso nem ao
menos era tia: o laço de parentesco exato era prima, de segundo ou
terceiro grau, prima de minha mãe. Veio do interior do estado, filha
de algum fazendeiro, talvez em férias. Talvez com dezoito ou vinte
anos, quem sabe mais. Quando tento puxar a lembrança, montar
uma imagem mínima, mesmo que imprecisa, não vem nada, nenhum
flash. A única recordação são os fatos que conto.
O mais remoto ocorre em meio a uma madrugada. Não sei quando
ela chegou. Não lembro se antes dessa noite já estava em nossa
casa. O primeiro ato é simplesmente sabê-la ali, sem saber quem
era, na cama debaixo do beliche, justamente em minha cama. Ou
a que era a minha cama. Eu havia sido realocado para a de cima.
Acordara no meio da noite com seus resmungos. Emitia sons muito
estranhos, como não conseguisse livrar-se de um pesadelo: o que era
verdade. Aos poucos algumas palavras tornaram-se compreensíveis.
Falava em demônios, que seu corpo estava sendo tomado, estava
sendo possuída e pedia reiteradas vezes ajuda. Repete sem parar
a mesma coisa. Tomo um pouco de coragem, olho para baixo e
descubro em primeira visão, enrolada em cobertas, a minha tia com
os olhos estatelados. Na outra cama meu irmão mais velho dorme
profundamente. Estou apavorado. Cubro a cabeça pra não escutar.
Tapo os ouvidos. Não há como. De manhã corro para o quarto de
meus pais; não sei como suportei tanto tempo em meu quarto. É
domingo, minha mãe divide a cama com minha irmã e meu irmão
menor; ao lado o berço da pequena. Quero contar o acontecido,
mas não dá tempo: a tia invade o quarto, de camisola, cabelos
desgrenhados, olhos injetados, consciência absolutamente alterada.
Ao grito de minha mãe que pergunta assustada o que aconteceu,
ela desaba ao chão e se debate, berrando as mesmas coisas que
resmungara à noite toda.
Não é só tamanho que é difícil para uma criança determinar, a
extensão do tempo também, assim não consigo precisar o número
de dias ou semanas que esta tia permaneceu em nossa casa. Lembro
que neste período troquei de quarto e quando passava em frente ao
antigo, acelerava o passo e tratava de mudar a direção do olhar –
embora meus olhos, por sua conta e meu risco, insistissem em olhar
para lá. Do quarto saiam gemidos estranhos, falas assustadoras...
Por muitos anos este quarto e seus acontecimentos traumáticos,
estiveram presentes na minha imaginação e presidiram meus maiores
medos.
Uma noite a tia desapareceu. As malas continuavam lá. Saiu todo
mundo desesperado a procura. Eu e meu irmão mais velho fomos
convocados. Cada um deveria seguir em uma direção. À noite,
sozinho, aquela época as ruas eram muito menos iluminadas, torcia
para que não fosse eu a encontrar a tia: “se der de cara com ela
eu saio correndo”. Perto das dez ou onze da noite ela apareceu.
Estava bem mais tranqüila. Prestou conta que havia ido à Igreja
Nossa senhora das Mercês, que ficava algumas quadras de casa,
onde permaneceu durante algumas horas conversando com o padre
e que deixou lá todo o dinheiro que havia trazido. Parece que era
um bom dinheiro. Lembro do meu pai e meu avô seguindo em
carreira para igreja na esperança de convencer o padre a devolver.
A princípio o padre se mostrou relutante, só aceitou fazer isso diante
dos argumentos do meu pai que uma doação prevê o livre arbítrio,
o que não era o caso, já que a tia estava possuída. Resultado: os
capuchinhos, a igreja pertence aos franciscanos, acabaram avisados
do episódio de satanismo domiciliar e minha casa foi palco de
seguidos rituais de exorcismo.
Para combinar com essa história, ou como parte dela, no
mesmo período outros acontecimentos estranhos ocorreram nas
dependências da casa: um guarda roupa se lançou contra a minha
mãe e o berço da minha irmãzinha pegou fogo. O clima estava
completo. O diabo gritando e os móveis voando e pegando fogo.
E começaram as visitas dos capuchinhos: batinas marrons até o
chão, eu sabia que elas eram providas de bolsos onde carregavam
os santinhos que a gente colecionava como se fossem figurinhas,
inclusive jogava bafo com eles; traziam crucifixos no formato
tamanho família e vidros de água benta para disparar em direção
à minha tia, enquanto falavam uma língua estranha – “é latim”
– informava a minha mãe – “estudei no normal”. E para mostrar
conhecimento traduzia uma ou outra palavra; e não parou aí,
entusiasmada pela oportunidade de demonstrar o latim guardado por
anos e anos, não se conteve e aventurou a declamar uns trechos de
Catulo: “quatiensque terga taurei teneris caua digitis” Até o demônio
julgou isso impróprio, meio despropositado. Em alguns momentos os
franciscanos dirigiam olhares sérios para nós, procurando intimidar;
queriam que além do coisa-ruim, também a gente desse o fora dali.
Mas isso não botava medo. Talvez se meu pai aparecesse berrando,
mandando sair, sumíssemos dali e seguíssemos a achar um cantinho
possível de assistir a tudo escondido. Ninguém queria perder nada,
nenhum capítulo, nenhuma cena. Era reza, água benta e a tia
gritando. Os padres bem que se esforçavam, mas o demônio se
sentia em casa, fazia que nem era com ele, nem dava pelota. Chegou
ao luxo de tirar cochilos. Depois voltava. Ao final da tarde, esgotados,
os padres é que foram embora; ficou a gente, a tia e o diabo. Mas
antes que isso acontecesse, tomei minhas providências: encontrei um
jeito de pedir santinho para a minha coleção.
Aos poucos isso foi virando meio rotina da casa. A tia não ia embora,
tampouco ia quem ocupava a tia. Os domingos continuavam
acontecendo como sempre; agora com um número ainda maior
de visitantes. A tia era a estrela da casa, o centro de todas as
conversas: as rápidas em voz baixa ou de debates acalorados
regados a vinho entrincheirados na ciência ou ocultismo. Cada um
arriscando uma explicação, prescrevendo uma receita para o caso: de
água benta com açúcar até banho frio de mangueira na minguante,
tudo era aventado. Em um desses domingos apareceu o tio Jaime. O
Tio Jaime também não era tio e tampouco era parente. Tinha feito a
Faculdade de Direito com o meu pai. Na época era seu melhor amigo.
Escutara a empregada de casa dizer, em meio a suspiros, que o “tio
Jaime tem algo que remexe com a gente”. Altura mediana, magro,
cabelos castanhos, nariz meio adunco, os olhos azuis e uma voz firme
e tranqüila; mantinha um indefectível bigodinho como convinha a
época. Andava sempre perfumado e impecavelmente trajado em
um terno azul plúmbeo a combinar com os olhos. Tinha até um
fusquinha azul. Com certeza o seu maior charme estava na voz. Além
de advogado, depois promotor e juiz, o tio Jaime era cantor de ópera:
um tenor. Não era casado; nunca casou. Assim com frequência
almoçava em casa. Depois do almoço encontrava tempo para nos
proporcionar à sua interpretação, embriagada de emoção, de trechos
de ópera famosas. Em anos subsequentes ouvi rumores que o tio
Jaime tinha uma quedinha pela minha mãe. Deveria ser só fofoca;
sempre respeitoso, nunca demonstrou nada. Bem depois, muitos
anos após meus pais terem se separado, ouvi minha mãe reclamando
de meu pai enquanto lançava essa: “‘Tinha’ o Jaime e eu fui ter com
o João”. Dizia como querendo fincar uma estaca no coração do velho
ou o no dela.
Neste domingo onde estava em casa a tia que não era tia e o tio que
não era tio tudo iniciou como de hábito. A mesa repleta: Macarrão,
nhoque, carnes, empadão de palmito e maionese – outras saladas
ingressavam na superfície retangular quase como itens de decoração,
ninguém era obrigado a comer. Os adultos tomavam vinho e as
crianças Coca-cola e Crush – refrigerante era uma regalia reservada
aos domingos. A comilança, não findava aí, em seguida vinha o
artigo mais esperado: uma torta de sorvete feita por minha vó –
nunca experimentei coisa alguma que chegasse aos pés dessa
iguaria. Por fim, os adultos tomavam café e nos dias que o tio Jaime
almoçava em casa, antes que alguém pensasse em repimpar, em
refestelar em algum sofá, para a tradicional sesta domingueira, o tio
Jaime seguia ao seu clássico local de cantoria – era um canto da
copa, dizia que ali a acústica era melhor – e iniciava uma audição
para todos os presentes, independente de credos, idades ou classes
sociais: o programa era obrigatório a todos, habitantes ou visitantes;
e ai dos pequenos se não comparecessem. E assim, em conforme
como as outras vezes, sem que maiores sobressaltos tivessem
ocorrido, findava a primeira parte desse domingo e estávamos
prestes a iniciar a segunda parte: a apresentação do tio Jaime.
Enquanto isso a tia no quarto: porta fechada, resmungando em
companhia de seus demônios. Tínhamos esquecido da tia. Ela não foi
chamada para os sucessivos eventos que ocorriam, não por
preconceito em relação às suas companhias, mas por distração, puro
esquecimento. De súbito, justo no momento que inicia a nossa
sessão prive, com um dos cantos da ópera de Rugero Leoncavallo, Il
Pagliacio, abre-se a porta que liga a parte intima da casa com a
social, e ali diante de todos irrompe uma figura medonha, a nossa
medusa privada: olhos estatelados, cabelos desgrenhados, boca
espumando disposta a gritos, o corpo pronto a desabar ao chão e ser
alcançado por uma torrente de espasmos. Tio Jaime está de costa e
continua a sua atuação como se nada se passasse. O restante de
nós, ouvintes – de tio Jaime – e expectadores – da tia – em
suspense, com as atenções divididas entre as duas performances,
uma começando e a outra às vésperas de iniciar. As duas sendo
deflagradas exatamente no mesmo lugar, tio Jaime e o coisa-ruim
em uma mesma rota; a colisão era iminente. Mas aí o extraordinário
aconteceu. Ao contrário de tudo que poderia se imaginar, a medusa
frustra a todos: não desaba, não grita, não resmunga mais, não fala
nada; seus olhos desafogam, sua boca cessa o programa de
convulsões, seu corpo relaxa e perde a rigidez; em seguida, passa a
mão nos cabelos, denotando uma preocupação com a aparência. Foi
esta a audição mais fantástica até então ouvida do tio Jaime. Ao final
do dia atendendo a uma solicitação geral, o tio Jaime fez uma
segunda sessão. Na primeira fila estava minha tia vestida em trajes
de domingo e penteada.
A história não acaba aqui. O dia seguinte transcorreu em quietude
como a tempo não se via. No outro a tortura recomeçou. Berros
daqui e dali. A casa tremia. Não havia quem não quisesse despachar
a tia que era prima para os quintos dos infernos. Depois de algum
tempo, ocorreu uma idéia, e veio da empregada de casa: “Chama o
tio Jaime” – arriscou com os olhinhos faiscando. Genial. Por que
ninguém havia pensado nisso? E atendendo aos nossos chamados
veio o tio Jaime nos deleitar com uma audição especial. Em minha
casa tio Jaime interpretando Il Pagliacio, era sucesso absoluto,
inquestionável, mesmo em dia de semana. Assim ingressamos em
nova temporada: uma temporada de shows diários com o tio Jaime.
De segunda a segunda. Mal a tia começava a gritar, de imediato
alguém lembrava em convocá-lo. Era o suficiente para o capeta ficar
sem forças; nem precisava de crucifixo e água benta, perdia de cara
para a escova de cabelo e perfume. Um dia a tia gritou e o tio Jaime
não pode vir; viajara. O diabo aproveitou para dar o troco, tomou
conta, agora pra valer: dois dias a fio gritando sem dar trégua. Eram
gritos e grito e nada do tio Jaime voltar de viagem. A casa estava um
inferno, ninguém agüentava mais, de novo foi a nossa empregada
que tomou a iniciativa: “Quem sabe não seria o caso de chamar os
capuchinhos para tirar o bicho?” – emendou enquanto fazia o sinal da
cruz. Dia seguinte três representantes do Senhor chegavam à nossa
casa; fisionomias pesadas, nem cumprimentaram direito os
moradores, acho que nem santinho eles tinham nos bolsos. Estavam
concentrados, completamente absortos ao grande combate. Como de
costume vestiam a batina marrom até os pés com uma corda
amarrada na cintura; todos traziam um crucifixo tamanho família
firmemente agarrado por uma das mãos, como se esse objeto
simbólico fosse um rifle, essencial às suas sobrevivências; na outra
os itens eram diferentes: um ficara em posse da água benta, o outro
carregava um livro grosso e o terceiro uma balança esquisita que
soltava fumaça. A tia foi trazida do quarto para sala escoiceando. O
quarto era pequeno para tanta assistência, a notícia do duelo correu
solta no bairro, teve vizinho que fez de tudo para ser convidado, veio
até gente do centro pra ver; isso me deixava com uma pontinha de
orgulho, era como ter televisão em casa em seus primórdios. Diante
dos servos de Deus, o rosto da possuída se contorcia em clara
demonstração de provocação; grunhia e proferia impropérios. A sala
foi tomada por nuvens de incenso, os capuchinhos mandando ver na
água benta e gastando o latim. Era uma guerra. Mas nada do tinhoso
mudar de endereço. Na verdade era ele que levava clara vantagem e
se estabelecia de vez. Três contra um e nem assim. O clima estava
tão tenso que desta vez minha mãe nem arriscou a traduzir o que
eles diziam. A tia já não alternava mais a voz grossa e a fina: era só
ronco, rosnado e palavrão. Estava entregue: dominada pelo capeta.
A esta altura não havia mais tia ali, era só ele: o demo. Depois de
tantas horas de combate sem qualquer progresso os padres
começavam arrefecer, a entregar os pontos: o incenso e a água
benta acabando e a voz do franciscano que puxava as rezas
começando a falhar. Danou-se. Foi-se a tia. Foi aí que pressenti o
demônio meio diferente, gritava em outro tom; percebi que não
havia só arrogância e soberba em sua voz, também desespero:
peguei o danado em meio a impropérios e frases sem sentido
suplicando humilde, o diabo rogava em uma voz embargada e rouca,
mas em perfeita clareza: “Chama o tio Jaime... chama o tio Jaime...”.
M.M.
Dezembro de 2011